Você já sentiu a poesia que pulsa nas feiras livres, que conta a história de um herói improvável ou que narra a bravura de um cangaceiro? A Literatura de cordel não é apenas um gênero literário; é um fenômeno cultural, um registro histórico e, acima de tudo, a voz do povo brasileiro. Pendurada em barbantes (o “cordel” que deu nome ao gênero), ela é jornal, folhetim e crítica social, tudo rimado e cantado. Se você quer entender a alma da narrativa popular, mergulhar na Literatura de cordel é o caminho.
Este gênero centenário se mantém vivo porque transforma o complexo em algo acessível, o épico em algo cotidiano. Ele nos lembra que a grande arte pode nascer de um pedaço de papel simples e de um bom contador de histórias.

Uma manifestação popular brasileira
As Origens da Poesia Popular: A História da Literatura de Cordel
Para entender a força da Literatura de cordel no Brasil, é preciso olhar para o seu passado transcontinental. Sua origem não está na caatinga, mas nas cortes medievais.
Do Trovadorismo Europeu às Feiras de Portugal
As raízes do cordel remontam à tradição oral europeia, notadamente aos trovadores medievais e às baladas populares que se espalhavam pelo continente. Em Portugal, essas histórias rimadas ganharam formato impresso, sendo vendidas em folhetos presos em cordas ou barbantes — daí a nomenclatura “Literatura de cordel” que carregamos.
Eram as notícias e os entretenimentos da época, vendidas por pregões nas feiras. Essa tradição de narrar eventos em versos e vendê-los em brochuras baratas cruzou o Atlântico com os colonizadores. O surgimento dos tipos móveis e das primeiras impressoras na Europa, possibilitou a multiplicação desses folhetos.
A Chegada ao Brasil: O Berço Nordestino
No Brasil, o cordel encontrou seu ambiente mais fértil e autêntico no Nordeste, onde a tradição oral dos cantadores e repentistas já era fortíssima. A partir do século XIX, o cordel se tornou uma ferramenta de registro popular.
Transformou-se no principal meio de informação e diversão para as populações rurais, registrando eventos históricos, catástrofes naturais (como a seca) e a vida de figuras locais de forma acessível. O crescimento da migração interna, inclusive, levou o cordel para outras regiões do país, como o Sudeste.
Literatura de Cordel: Gênero, Forma e Métrica
A Literatura de cordel possui regras rígidas. Sua estrutura é tão engenhosa quanto seu conteúdo, garantindo que a poesia fosse fácil de memorizar, declamar e, claro, rimar.
Os Folhetos: Formato e Distribuição Antiga
O formato é parte essencial do charme do cordel. Os folhetos são pequenos cadernos artesanais, impressos em papel de baixa qualidade e geralmente custando poucas moedas. Eram vendidos diretamente pelo poeta-cantador nas praças e mercados.
Essa distribuição direta e democrática garantia que a voz do povo chegasse onde o jornal oficial não chegava, consolidando a Literatura de cordel como a principal mídia da região.
A Arte da Sextilha e do Setessílabo
A espinha dorsal da Literatura de cordel é a métrica. A forma mais comum é a sextilha (estrofes de seis versos), todos com rima e ritmo bem definidos.
O ritmo do cordel é ditado pelo verso setessílabo (ou heptassílabo), que é um verso de sete sílabas poéticas. Essa cadência é perfeita para a cantoria e para a oralidade, facilitando a memorização e o apelo popular. A maestria na rima e na métrica diferencia o cordelista profissional do amador.
A Importância da Oralidade e da Cantoria
Antes de ser escrita, a Literatura de cordel é performática. O poeta-cordelista é, frequentemente, um cantador que interpreta a história, vendendo-a com carisma e entonação. Essa performance teatral é o que dá vida ao verso e o que prende o ouvinte/leitor.

Tesouros do Verso: Histórias Famosas da Literatura de Cordel
A vasta obra da Literatura de cordel abrange romances de cavalaria, fábulas satíricas e crônicas dramáticas. Algumas histórias se tornaram tão famosas que transcendem o folheto e são conhecidas em todo o país.
O Voo Fantástico: A Lenda de O Pavão Misterioso
Um dos cordéis mais famosos, O Pavão Misterioso, escrito por José Camelo de Melo Resende, é um épico de aventura e fantasia.
A história narra a fuga da donzela Creuza, aprisionada em um castelo na Turquia, auxiliada por seu amado, que constrói um pavão misterioso mecânico capaz de voar. A mistura de romance, aventura e tecnologia fantástica o tornou um best-seller atemporal da Literatura de cordel.
O Cangaço e o Sobrenatural: A Chegada de Lampião no Inferno
Este cordel de José Pachêco, talvez o mais conhecido, é um exemplo da capacidade do gênero de absorver o mito e a história.
O folheto imagina o que acontece quando o famoso cangaceiro Lampião e sua companheira, Maria Bonita, chegam ao inferno, confrontando o Diabo e suas legiões. É uma obra-prima de sátira social e humor popular que solidificou a lenda do cangaço no imaginário nordestino.
Outras Fábulas Notáveis: De O Boi Místico ao Romanceiro
Outras obras, como O Boi Místico (que trata de temas religiosos e milagres) ou as narrativas sobre a Guerra de Canudos, mostram a diversidade da Literatura de cordel. Elas provam que o gênero funciona como um espelho da sociedade, registrando do folclore mais simples à política mais complexa.
A Voz do Povo: Temas e Significado da Poesia Popular
A função da Literatura de cordel na sociedade brasileira vai muito além da poesia; ela é um documento social.
Cronistas da Seca e do Cangaço
Os cordelistas eram os cronistas do sertão. Eles narravam as secas devastadoras, a miséria e, claro, os mitos do Cangaço, transformando figuras violentas, como Lampião, em heróis populares ou demônios, dependendo da narrativa. A Literatura de cordel deu voz a quem não era ouvido.
A Crítica Social e Política no Verso do Cordel
O gênero sempre teve uma forte veia satírica e política. Ele critica os coronéis, os políticos corruptos e as injustiças sociais com um humor ferino e direto. Os versos eram o jornal e o protesto de grande parte da população. Essa tradição de crítica segue viva em publicações contemporâneas.
A Tradição da Xilogravura: Arte Visual do Cordel
Não podemos falar da Literatura de cordel sem mencionar a xilogravura. Esta técnica de gravação é feita em uma matriz de madeira (tábuas ou blocos). O artista entalha a figura desejada na madeira e, após a aplicação de tinta, usa a matriz para estampar a capa do folheto.
O resultado é uma imagem de alto contraste (preto e branco), rústica e dramática, que se tornou a identidade visual inconfundível do cordel, funcionando como um cartaz que vendia a história antes mesmo de o leitor começar a ler. O entalhe exige precisão e sensibilidade artística.

O Legado Vivo: A Literatura de Cordel Inspira a Escrita Atual
Apesar do avanço das mídias, a Literatura de cordel nunca morreu. Ela se transformou em fonte de inspiração para a arte e a literatura nacional.
Influência no Modernismo e na Geração de 70
Grandes nomes da literatura erudita se renderam ao cordel. O Movimento Modernista buscou no cordel uma forma de resgatar a brasilidade e a linguagem popular. Ariano Suassuna, com sua obra O Auto da Compadecida, é um dos exemplos mais famosos dessa fusão. A influência se estendeu à música popular e ao teatro.
O Cordel como Patrimônio Cultural Imaterial
Reconhecendo sua importância histórica e artística, a Literatura de cordel foi registrada como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Esse reconhecimento oficial garante a preservação do ofício dos cordelistas e da técnica da xilogravura, mostrando que a tradição é valorizada institucionalmente.
Dicas de Escrita: Usando o Ritmo do Cordel em Outros Gêneros
Se você escreve, o cordel pode ser uma escola:
- Foco no Ritmo: O setessílabo treina seu ouvido para a cadência das frases.
- Clareza Dramática: Aprenda a ir direto ao ponto. Cordel não tem espaço para divagações.
- Força no Diálogo: Use falas que revelem a essência do personagem de forma rápida e memorável.
A Jornada Começa no Cordel
A Literatura de cordel é a prova de que as histórias mais poderosas são aquelas que nascem da necessidade, da paixão e da voz do povo. Ela é um convite para entender que a poesia não está apenas nos livros caros, mas também nos folhetos simples, pendurados em um barbante.
Ao conhecer a história do cordel, você não está apenas aprendendo sobre um gênero, mas sobre a própria alma da cultura popular brasileira.
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Perguntas Frequentes sobre Literatura de Cordel
O que é Xilogravura?
A xilogravura é a técnica de gravação feita em relevo sobre uma placa de madeira. A matriz entalhada é entintada e usada para estampar o papel, sendo a técnica tradicionalmente usada para ilustrar as capas da Literatura de cordel.
Quem são os maiores cordelistas?
Grandes nomes incluem Leandro Gomes de Barros (considerado o precursor), Patativa do Assaré e José Camelo de Melo Resende (autor de O Pavão Misterioso).
O Cordel é restrito apenas ao Nordeste do Brasil?
Embora o Nordeste seja o berço e o centro de produção mais forte, a Literatura de cordel é uma manifestação cultural reconhecida em todo o Brasil e é estudada academicamente em universidades de todo o mundo.



